SOBRE DESAPEGO

Sobre Desapego (aparigraha, de Patañjali) – 

Fiquei impedida por orientação médica de praticar Ashtanga Yoga por quatro meses, devido a uma retirada de um nódulo benigno do seio e sequente cirurgia plástica. Nesta modalidade de yoga há uma série fixa de posturas e, conforme conquistamos uma, passamos para a outra, sob orientação de um professor. Tinha parado no bujapidasana. Quando retornei, muitos ásanas, fáceis de realizar, nesta nova etapa, pareciam bem difíceis. E eu sabia que teria que voltar com calma… Mais substancialmente senti as perdas no marichyasana D e no urdhva dhanurasana (ponte), duas posturas que eu já fazia com muita facilidade.

Esta última até hoje, um ano e meio depois da cirurgia, eu ainda faço sem a mesma destreza de antes. Mais recentemente senti uma abertura maior do peito e o medo de que algo rasgue vai passando, apesar de ficar ainda uma dorzinha do lado esquerdo onde a incisão foi maior. A voz da médica no meu ouvido falando que está tudo bem e eu não devo ter nenhuma limitação de movimento, somada às dicas verbais da professora durantes a quarentena, tem ajudado muito. Há duas semanas mais ou menos, pude sentir uma abertura verdadeira, abertura de espaço para deixar fluir o presente sem tantas arestas do passado latente na mente.

Em relação ao marichyasana D, eu exteriorizei mais o sentimento de inconformação da perda e esta consciência atualíssima é que me levou a escrever este texto. Há uns três anos eu já fechava bem esta postura. Até chegar a isso, demorei quase um ano (na ocasião, minha então parceira de Ashtangaera quem me ajustava). Um ano depois da cirurgia, tudo perdido. Como assim?!?! Exteriorizei isso para a minha atual professora várias vezes, a qual sempre me dizia que “isso acontece”, “tenha paciência que uma hora volta”. Foram inúmeras às vezes que ela me ajustou, antes da quarentena. Alguns meses depois de passado o primeiro ano pós cirurgia (já na quarentena, sem ajuda da professora), eu comecei, de repente, a fechar sozinha novamente. Um dia sim. Mas no outro dia não conseguia de novo. E, confesso, tive crises de raiva e de choro.

Às vezes, na prática solo, chamava o meu filho mais novo para me ajustar. Às vezes era o meu marido (também praticante de ashtanga yoga). Às vezes não tinha quem ajudasse. Quando não tinha outro compromisso imediato, eu tentava novamente. Quase sempre conseguia da segunda vez. Mas chegava outro dia e eu não conseguia. Em geral, mesmo nas práticas guiadas, antes de começar o ásana, eu já ficava ansiosa com a possibilidade do fracasso. Comecei a observar mais minha alimentação do final do dia anterior. Comecei a fazer a última refeição mais cedo e aumentar o tempo de jejum para início da prática. Isso parece realmente fazer diferença no desempenho… antes isso parecia não ser tão necessário.

Ontem estava praticando ao lado do Ricardo, meu marido. Quando chegou a vez do marichyasana D, lá veio a cena de raiva (perto de pessoas íntimas a gente disfarça menos os sentimentos). E ele me atingiu com palavras certeiras. Disse que eu tinha que me desapegar. E não estava falando de coisas materiais do passado, não estava “filosofando”, estava me dizendo que eu tinha que me desapegar da postura.  Que o meu problema era o apego. Que eu deveria me libertar do que eu fazia no passado, e seguir daqui para frente. Com essas palavras e algum esforço mais uma vontade tremenda de chorar, somados à voz forte da Camila, a professora, saindo do celular, falando para abrir o peito e colocar força nos dedos, estes se entrelaçaram. Era uma aula mysore (cada um no seu ritmo e seguindo a sua respiração) via zoom e a professora talvez nem imaginasse o turbilhão que se passava do lado de cá.

Céus!!! Eu que inclusive já escrevi sobre aparigraha, “desapego” ou “não possessividade”, estava recebendo a lição. DESAPEGO. Hoje entrei na prática mais desapegada, possivelmente. Porque simplesmente o ásana aconteceu com maior fluidez. Não sei se amanhã será assim, pois a jornada na existência é uma sequência de erros e acertos e a evolução não acontece de forma linear. O que posso dizer é como se eu tivesse vivido, celularmente (no tapetinho), a experiência do desapego. Como se isso me desse uma verdadeira direção ou mesmo forças para eu viver, verdadeiramente, essa experiência de forma macroestrutural (fora do tapetinho). São muitas as coisas (lugares, pessoas, bens materiais) das quais, talvez, o desapego esteja mais reverberante no plano teórico. Talvez a recursividade dos fatos (por vezes difíceis), trazida por algum obstáculo ou impedimento, sirva para proporcionar uma evolução mais ampla.


Relato de Edilaine Buin